Transcrição do quinto episódio da terceira temporada publicado no dia 15 de setembro de 2023.
Bloco 1
[Laira]
E aí, Frank? Tudo em cima?
[Frank]
Tudo!
[Laira]
Que bom que te encontrei. Queria conversar com você sobre uma coisa que vi recentemente.
[Frank]
Pois diga.
[Laira]
Eu assisti ao filme Minority Report, sabe… e aí comecei a pensar no livre arbítrio por causa dele. Tu já viu esse filme?
[Frank]
Com certeza! Mas aí ei te pergunto: você acha que as pessoas têm livre-arbítrio ou que nossas escolhas já estão predestinadas?
[Laira]
Eu acho que temos livre-arbítrio. MAS às vezes parece que as coisas já estão determinadas, sabe?
[Frank]
Entendo, sim. Muitas vezes, as circunstâncias que nos cercam podem parecer nos forçar a tomar uma determinada decisão. Mas isso não quer dizer que não temos escolha, né.
[Laira]
Mas como isso se aplica na vida cotidiana? Tipo: às vezes nos sentimos obrigados a fazer algo, mesmo que a gente não queira.
[Frank]
É verdade. Mas mesmo nessas situações, ainda temos o poder de escolha. Por exemplo: imagine que você tem uma dieta rigorosa e alguém te oferece um pedaço de bolo, bem delicioso. Você pode escolher entre seguir a dieta e não comer o bolo, ou comer o bolo e quebrar a dieta. A escolha é sua.
[Laira]
Então você acha que temos liberdade para fazer escolhas, mesmo que as circunstâncias possam nos influenciar.
[Frank]
Acho.
[Laira]
Huuummm….. Mas como os filósofos veem essa questão aí do livre arbítrio?
[Frank]
Pra te responder bem eu vou precisar de tempo. Aí a gente vai examinando com mais cuidado as ideias igual como a gente fez em conversas anteriores. O que acha?
[Laira]
Eu aceito. Que tal a gente fazer isso comendo algo na lanchonete? Dessa vez eu pago.
[Frank]
Comida de graça? Aceito. Bora lá, pô.
Bloco 2
[Frank]
O que você acha que é o livre arbítrio, Laira?
[Laira]
Nossa que pergunta difícil.
[Frank]
Quer tentar responder?
[Laira]
Tá bom, vou tentar… Éééé…. O livre arbítrio… eu acho que tem haver com liberdade. Por exemplo: hoje eu escolhi vir aqui tomar café com você e não há nada me obrigando a estar aqui.
[Frank]
É… intuitivamente é por aí mesmo.
[Laira]
Tu consegue me definir melhor o que é o livre arbítrio?
[Frank]
Eu diria que o livre arbítrio é a capacidade que uma pessoa tem de agir livremente. Ou seja: ela tem várias opções, vários cursos de ação e aí escolhe praticar algum desses cursos de ação ou até mesmo nenhuma dessas opções. Por exemplo: imagina que eu estou em uma bicicleta. Eu posso decidir ir com ela até a padaria ou ir até o parque. Ou eu posso simplesmente não andar de bicicleta: saio de cima dela e entro pra dentro de casa com ela. Isso é ter livre arbítrio.
[Laira]
É: tu definiu melhor do que eu.
[Frank]
Mas também: se eu não conseguisse fazer isso, porra, pra que eu tô estudando filosofia, né…
[Laira]
Agora me diz uma coisa: como é que essa noção de livre arbítrio que tu me disse agora se relaciona com o Minority Report?
[Frank]
Vamos recapitular: no filme, o personagem principal, que é John Anderton, é acusado de um crime que ainda não cometeu. Isso só é possível porque a polícia usa uma tecnologia de previsão do futuro para capturar criminosos antes que eles cometam seus crimes. Aí o sistema prevê que Anderton vai cometer um assassinato no futuro, né, e aí eles vão atrás dele antes que ele possa cometer o crime.
[Laira]
A previsão do sistema de previsão de crimes do filme tira o livre arbítrio do personagem.
[Frank]
Exatamente. Na verdade a existência desse sistema coloca em questão a ideia de livre-arbítrio, já que os indivíduos são considerados culpados e presos antes mesmo de cometerem um crime. A previsão desse sistema meio que tira a capacidade de Anderton de escolher e agir de forma livre porque, em teoria, o sistema já previu o que vai acontecer. Ou seja: nesse filme o universo é determinado.
[Laira]
É verdade. E com a gente parece ser o oposto do que se desenvolve desde o início do filme. Tipo: a gente escolhe o que vestir de manhã, o que comer no almoço, com quem sair para jantar à noite e por aí vai. Tudo isso é uma escolha nossa porque temos a capacidade de decidir livremente.
[Frank]
De fato. Agora: outra coisa que o filme aborda em relação ao livre arbítrio é a relação desse conceito com a noção de responsabilidade moral.
[Laira]
O que tu quer dizer com responsabilidade moral é as pessoas serem responsáveis ou condenadas pelo que elas fazem?
[Frank]
Sim, sim. Quando exercemos nosso livre arbítrio, estamos tomando decisões que têm impacto na nossa vida e na vida dos outros. Por isso, temos que ser responsáveis pelas consequências das nossas escolhas. Imagina só a merda que vai dar se a gente enchesse a cara e aí fosse dirigir…
[Laira]
É verdade. Só que no filme não tem essa responsabilidade: as nossas ações estão pré-determinadas e por isso não faz sentido em falar em ética, por exemplo.
[Frank]
Exatamente. Bom: ainda bem que no final do filme a gente descobre que o universo do filme não é determinístico.
[Laira]
Agora eu fiquei curioso. A gente tá rondando a nossa conversa no problema “O que é o livre arbítrio?”, certo?
[Frank]
Isso mesmo.
[Laira]
Que respostas existem a esse problema filosófico? Que teorias tem que tentam responder esse problema?
[Frank]
Excelente pergunta, Laira. Realmente vc aprender sobre o filosofar e leva jeito pra coisa.
[Laira]
Obrigada!
[Frank]
Tem o determinismo, o libertismo e o compatibilismo. Vou tratar de cada uma delas com calma, certo?
[Laira]
Manda bala!
Bloco 3
[Laira]
Okay, Frank. Vamos ao que interessa: o que é o determinismo?
[Frank]
O determinismo é uma tese filosófica que afirma que todas as ações e eventos são determinados por causas anteriores e pelas leis da natureza. Ou seja: tudo que acontece no mundo é causado por algo que aconteceu antes, e aí isso cria uma sequência de eventos que é determinada.
[Laira]
Tudo seria determinado?
[Frank]
Isso mesmo.
[Laira]
Que exemplos tu consegue me dar sobre essa tese filosófica?
[Frank]
Bom: um exemplo é o movimento dos planetas. O movimento dos planetas em nosso sistema solar, por exemplo, é governado por leis físicas precisas e previsíveis. O que isso significa? Que podemos prever com precisão onde um planeta vai estar em um determinado momento futuro com base na sua posição atual e nas suas leis de movimento.
[Laira]
É verdade, olha…
[Frank]
Um outro exemplo seria o comportamento dos animais. O comportamento deles é influenciado por fatores genéticos e ambientais. Isso significa que, numa certa situação, nós podemos prever como um animal vai se comportar com base nas suas características genéticas e no seu ambiente.
[Laira]
E a gente, nós, seres humanos, entramos também nesse bolo do determinismo?
[Frank]
Entramos. Tipo: as escolhas que fazemos e as ações que realizamos são resultado de uma cadeia causal de eventos que remontam ao início do universo. E como tudo é determinista, não existe livre arbítrio.
[Laira]
Huuummm…. sei não, em.
[Frank]
O que te incomoda nessa tese?
[Laira]
O determinismo me parece ser muito rígido, sabe. Parece que as pessoas não têm escolha sobre o que fazem. Pensa comigo: a ideia de que tudo é determinado parece limitante demais…
[Frank]
Entendo seu incômodo. Soa meio contraintuitivo a nossa experiência diária, né?
[Laira]
Isso mesmo. E uma vez eu li um artigo sobre uma mulher que sofria de depressão e, apesar de querer muito, não conseguia se livrar dessa desgraça. Se o determinismo é verdadeiro, isso significa que ela não tinha escolha sobre como se sentir e agir?
[Frank]
É, Laira, concordo com você. Tipo: se tudo é determinado, onde fica a nossa liberdade? Como podemos ser responsáveis por nossas ações se tudo é pré-determinado?
[Laira]
Exatamente. Já ia falar da responsabilidade moral. Acho que essa responsabilidade é o que mais grita contra o determinismo.
[Frank]
Sim, sim: é uma objeção ao determinismo.
[Laira]
Se alguém rouba uma pessoa e tudo é determinado, como podemos culpar a pessoa que roubou? Não tem como culpar ela.
[Frank]
Mas se acreditamos que a pessoa tem liberdade de escolha, então podemos responsabilizá-la pelo roubo.
[Laira]
Exato!
[Frank]
É: eu também concordo que existe responsabilidade moral. Se a gente abrir mão disso, a coisa fica bem complicada…
Bloco 4
[Laira]
Ainda tem mais teorias sobre o livre arbítrio, né?
[Frank]
Tem sim. Duas, na verdade: o libertismo e o compatibilismo.
[Laira]
Então fala aí sobre esse libertismo.
[Frank]
Olha: o libertismo é a teoria que defende que temos livre arbítrio e que o determinismo é falso. Ou seja: o libertista defende que só somos verdadeiramente livres quando nossas escolhas e ações não podem ser determinadas por acontecimentos anteriores.
[Laira]
Me dá um exemplo pra ver se eu entendi bem o que tu falou.
[Frank]
Digamos que uma pessoa tá decidindo entre ir ao cinema ou ir ao teatro. De acordo com os libertistas, essa pessoa tem liberdade de escolha e não é determinada por fatores anteriores, como seus gostos e preferências pessoais ou eventos externos, como o tempo ou o preço dos ingressos.
[Laira]
É como se a escolha fosse feita de forma livre, sem ser influenciada por nada.
[Frank]
Exatamente.
[Laira]
Bom: essa teoria parece atender a nossa compreensão do dia a dia de agir, né. Pelo menos essa é a minha percepção inicial da coisa.
[Frank]
É… só que o libertismo também tem suas complicações.
[Laira]
Por exemplo…
[Frank]
A gente age em função das nossas crenças para satisfazer os nossos desejos, Laira.
[Laira]
A gente, então, é determinado por nossas crenças e desejos?
[Frank]
Isso mesmo. Imagina que uma pessoa que se chama Julia tem a sua frente 3 opções de caminhos a percorrer. Aí uma outra pessoa diz pra Julia que no caminho 2, no final desse caminho, tem uma mesa cheia de chocolate. A Julia ama chocolate e por isso escolhe percorrer o caminho 2. Tu percebe o que tá acontecendo aqui?
[Laira]
Percebo.
[Frank]
A Julia fez a escolha dela baseado no desejo dela de comer chocolate e na crença de que tinha uma mesa cheia de chocolate no caminho 2. Ela agiu determinada por uma crença e um desejo.
[Laira]
É… a escolha da Julia não foi verdadeiramente livre. Pelo menos não pra um libertista.
[Frank]
Só que a gente age na maioria das vezes dessa forma: com base em certas crenças e desejos. E aí elas nos determinam.
[Laira]
É… então meu entendimento inicial do libertismo estava errado. Ele não atende bem a nossa compreensão do dia a dia de agirmos…
[Frank]
Poisé…
Bloco 5
[Laira]
Falta agora só mais uma teoria, né?
[Frank]
Sim, sim.
[Laira]
E qual é a que falta? Eu já até esqueci o nome dela…
[Frank]
É o compatibilismo.
[Laira]
E o que é o compatibilismo?
[Frank]
O compatibilismo é a tese de que é possível existir ao mesmo tempo o determinismo e o livre arbítrio.
[Laira]
Oxe. E isso é possível? Me dá um exemplo disso.
[Frank]
Imagina que tu tá planejando o teu sábado. Tu tá decidindo entre ficar em casa e estudar, ir ao cinema ou passear com suas amigas. Depois de ter pensado um tanto sobre isso, você decide ir ao cinema. Ir ao cinema é uma ação livre e nada a impede de ir ao cinema. Além disso, sua decisão de ir ao cinema se baseou em certas crenças e desejos que você tem e que surgiram naturalmente enquanto se decidia.
[Laira]
Huuummmm…. verdade.
[Frank]
Entendeu o que é o compatibilismo?
[Laira]
Acho que entendi. Agora… me diz uma coisa: tem algo de diferente no compatibilismo em relação as outras duas respostas anteriores. Pelo que consegui pescar do teu exemplo, uma ação livre é uma ação que não é impedida de ser feita. É isso?
[Frank]
Tu percebeu um detalhe importante do compatibilismo, olha. Para os compatibilistas, uma pessoa só é livre quando o que ela escolhe e o modo como ela age é resultado do que ela quer de verdade. Se a gente pegar carona no exemplo que te dei, digamos que a sua mãe não te deixou sair pra ir ao cinema, te obrigando a ficar em casa estudando. Ir estudar, nesse caso, não é uma ação livre sua porque você foi obrigada, forçada a isso.
[Laira]
Huuummm…. verdade, verdade.
[Frank]
E aí: o que achou do compatibilismo?
[Laira]
Achei a mais plausível das três teorias que tu apresentou, olha… Mas agora eu quero saber se tem alguma objeção contra o compatibilismo.
[Frank]
Claro que tem! Por exemplo: uma objeção contra o compatibilismo seria a de que não seria possível tornar compatível o determinismo contra o livre arbítrio.
[Laira]
E se não é possível tornar os dois compatíveis, se o determinismo for verdadeiro, não vai ser possível atribuir as pessoas a responsabilidade moral, certo?
[Frank]
Exatamente. E uma outra objeção seria a de que o compatibilismo é, na verdade, um determinismo disfarçado. Tipo: se as nossas ações são determinadas por nossos desejos, valores e crenças, então estamos apenas empurrando a responsabilidade para outra coisa que é determinada por fatores anteriores.
[Laira]
Pode me dar um exemplo disso aí?
[Frank]
Por exemplo: imagina que uma pessoa decide se tornar vegana. O compatibilista diria que, mesmo que a decisão de Maria tenha sido determinada por seus valores e crenças, ela ainda é livre para agir de acordo com esses valores e crenças. Só que um oponente do compatibilismo poderia argumentar que, se os valores e crenças de Maria foram determinados por fatores anteriores, então sua decisão de se tornar vegana foi, em última instância, determinada também.
[Laira]
Huuummmm…..
Encerramento
[Laira]
Olá, gente! Eu sou Laira Maressa, sou biomédica e pesquisadora da Fiocruz Amazônia.
[Frank]
Olá, pessoas esclarecidas! Aqui quem fala é Frank Wyllys e sou tanto filósofo público quanto tenho TDAH.
[Laira]
Esse é o terceiro episódio da terceira temporada do podcast onde trato de boa parte dos mais conhecidos problemas filosóficos que perpassam o cotidiano das pessoas. Além disso, vale destacar que essa é uma temporada 100% financiada pela Manauscult por meio do edital de cultura de nome Thiago de Mello na sua versão novos Talentos. Fica registrado meus agradecimentos a Manauscult pela oportunidade e pela premiação em dinheiro.
[Frank]
Dito isto, o episódio está embasado em algumas referências e vale destacar parte delas. Uma dessas referências é o capítulo “Livre-arbítrio” do livro de título “Metafísica: conceitos-chave em filosofia”. O autor do livro é o filósofo Brian Garret e a editora do livro é a Artmed. Uma outra referência seriam os capítulos “O ataque ao livre-arbítrio” e “O debate sobre o livre arbítrio”, sendo eles do livro de título “Problemas da filosofia”. O autor do livro é o filósofo James Rachels e a editora do livro é a Gradiva. Ainda uma outra referência seria o capítulo “Determinismo e liberdade na acção humana” do livro de título “A Arte de pensar: Filosofia 10º Ano – Volume 1”. A editora do livro é a Editora Didáctica e o capítulo é de um manual escolar português que tem vários autores, então os autores são vários – entre eles o Aires Almeida.
[Laira]
Por fim, siga o podcast na internet! Você pode fazer isso nos seguindo no seu aplicativo ou serviço favorito de podcast – Spotify, Google Podcasts, Deezer, Amazon Music ou Castbox – ou nos seguindo nas redes sociais: no Facebook, Instagram e TikTok é @esclarecimentop – tudo junto e minúsculo – e no Twitter é @esclarecimento_ – tudo junto e minúsculo também.
[Frank]
Isso é tudo por hoje, pessoal.
Até o próximo episódio!
[Laira]
Tchau tchau!