Transcrição do décimo episódio da terceira temporada publicado no dia 20 de outubro de 2023.
Bloco 1
[Laira]
Aproveitando que tu tá formatando meu trabalho… posso te fazer uma pergunta?
[Frank]
Pode sim!
[Laira]
Eu tava pensando em ser neurocientista, Frank…
[Frank]
Mas tu já tem uma pós em mente, já?
[Laira]
Deus ajuda quem cedo madruga.
[Frank]
E a tua pergunta tem a ver com neurociência?
[Laira]
Tem a ver com cérebro, com a nossa mente. Isso é estudado em filosofia?
[Frank]
Olha… sim, é estudado sim. Tem uma disciplina em filosofia chamada filosofia da mente. Acho que é o mais próximo que tem do cérebro que a gente estuda, assim, em específico.
[Laira]
Sério? Que interessante! O que vocês estudam sobre a mente nessa disciplina?
[Frank]
Olha: a gente estuda nela coisas como a mente, qualia, intencionalidade, racionalidade, crenças, o problema das outras mentes, o problema da identidade pessoal… Mas acho que o principal problema que a gente estuda é o problema mente/corpo.
[Laira]
Olha: fiquei curiosa sobre esse problema principal aí…
[Frank]
O mente/corpo?
[Laira]
Esse mesmo. Tem como tu falar sobre ele?
[Frank]
Olha… filosofia da mente não é muito o meu forte.
[Laira]
Que nada! Tenho certeza de que você sabe muito sobre o assunto. Fala aí!
[Frank]
Eu tô… meio… receoso. Mas vou tentar compartilhar o que eu consigo lembrar desse problema.
[Laira]
Estou aqui pra te ouvir, princesa
[Frank]
Mas só depois do Pix!
[Laira]
Aí não meu patrão…
Bloco 2
[Frank]
Olha: várias das nossas ações e atividades do dia a dia envolvem aspectos físicos e mentais. Um exemplo seria jogar futebol, xadrez, dançar e por aí vai. Mas… será mesmo que existe essa divisão entre a nossa mente e o nosso corpo ou é tudo a mesma coisa ou é só uma forma de falar de nós mesmos?
[Laira]
Não sei te dizer…
[Frank]
O problema mente/corpo trata dessa relação entre essas duas coisas: a mente e o corpo.
[Laira]
Certo.
[Frank]
Mais precisamente, esse problema buscar saber se o mental pode ser ou não reduzido ao físico ou ao material.
[Laira]
Mas a mente pode ou não pode ser reduzida mental?
[Frank]
Não faltam respostas a esse problema filosófico. Existe, de um lado, o dualismo. Os dualistas, em linhas gerais, acreditam que o corpo e a mente são coisas distintas e que todos nós temos as duas. Os fisicalistas, em linhas gerais, acreditam que a mente e o corpo são a mesma coisa – a mente estaria, muito provavelmente, no nosso cérebro.
[Laira]
Huuummm… mas existem apenas essas respostas?
[Frank]
Claro que não. Tem bem mais do que imagina! Num tem essas duas que te falei agora?
[Laira]
Sim
[Frank]
As imagine como as pontas de um espectro de respostas. Aí, dentro desse espectro, temos o dualismo e suas versões, o behaviorismo e suas versões, a teoria da identidade mente/cérebro, o funcionalismo, o epifenomenalismo, o materialismo, o eliminativismo e por aí vai.
[Laira]
Caralho: realmente tem muitas respostas ao problema! Estou chocada!!!
[Frank]
É… eu também tive a mesma reação quando começou a estudar filosofia da mente.
[Laira]
Mas tu consegue falar um pouco de todas elas ou vai falar só de algumas?
[Frank]
Como eu disse: filosofia da mente não é o meu forte. E só consigo lembrar suficientemente bem do dualismo e do behaviorismo.
[Laira]
Então tu vai falar só dessas duas?
[Frank]
Só dessas duas mesmo. Mas depois eu te passo umas indicações de leitura pra tu mesmo ir aprendendo sobre essas outras teorias. Pode ser?
[Laira]
Tudo certo, Frank. Eu vou cobrar, em?
[Frank]
Pode cobrar à vontade!
Bloco 3
[Laira]
Tu vai começar pelo dualismo?
[Frank]
Isso mesmo. Recapitulando: no dualismo a mente e o corpo são duas coisas distintas.
[Laira]
Tá: quando tu me falou isso, eu achei que tinha entendido. Só que agora tá meio vago…
[Frank]
Se preocupe não que eu vou clarificar a teoria e aí essa confusão vai sumir.
[Laira]
Beleza.
[Frank]
O dualismo que eu vou apresentar aqui é o da teoria na sua fonte, do filósofo René Descartes.
[Laira]
Repete aí o nome do filósofo…
[Frank]
René Descartes.
[Laira]
Chique demais.
[Frank]
No dualismo cartesiano, a mente é uma coisa, uma substância não física, fora de qualquer corpo físico e não tendo extensão no espaço nem estando em algum ponto no espaço.
[Laira]
Caralho!
[Frank]
Que foi, mulher?
[Laira]
De onde foi que esse Descartes tirou essa ideia de uma mente que não é física e que não ocupa posição e extensão no espaço?
[Frank]
É que pra Descartes a realidade era dividida de duas formas. Na primeira a realidade é constituída de matérias que ocupam espaço. São todas as coisas que tem, por exemplo, altura, largura, comprimento e posição no espaço. Só que havia pra ele outra parte da realidade que ele achava que não podia ser explicada a partir da matéria. Essa outra realidade seria a mente humana. E a mente humana não tem extensão nem posição no espaço.
[Laira]
Aaaaaahhhhhhh siiimmm agora entendi. Acho que tô começando a entender…
[Frank]
O Descartes acreditava que era possível apontar que ele era uma substância pensante por meio da introspecção. Ou seja: ele sabia que existia e conseguia provar isso apenas com seu próprio pensamento. Além disso, ele não conseguia conceber que um sistema puramente físico, como nosso corpo, empregaria linguagem, raciocínios matemáticos ou qualquer coisa que um ser humano com mente faz no seu dia a dia. Ou seja: o Descartes não achava que o nosso cérebro ou o nosso corpo daria origem ou seria o lugar de algo mental, que expressa sentimentos, tem pensamentos e contém consciência.
[Laira]
Huuummm… entendi. E quais são as vantagens desse dualismo cartesiano?
[Frank]
Olha… me vem a mente ao menos duas vantagens…
[Laira]
Pois diga.
[Frank]
A primeira vantagem seria religiosa – principalmente pra quem acredita que nossa alma sobrevive após a morte do nosso corpo. Se a nossa mente e seu conteúdo – nossas memórias, identidade, etc. – é algo que fica fora do nosso corpo, ele pode sobreviver mesmo que nosso corpo pereça.
[Laira]
É verdade. Se a nossa mente está ligada a nossa alma, então morreu o corpo a nossa mente fica na nossa alma – e aí a gente pode ir pro céu ou reencarnar em outro corpo.
[Frank]
Exatamente. Agora: a segunda vantagem do dualismo cartesiano seria a dele ter uma vantagem explicativa em relação a fenômenos parapsicológicos.
[Laira]
Comassim?
[Frank]
Coisas como telepatia, precognição, telecinese e clarividência são de difícil explicação por meio do nosso conhecimento científico em relação a realidade física/material. Mas, se eles forem reais, esses fenômenos podem estar a refletir a natureza suprafísica da mente.
[Laira]
Nossa: que esquisito… Mas acho que eu entendi a lógica da parada.
[Frank]
Achou esquisita essa vantagem?
[Laira]
Achi sim. Mas como esses fenômenos envolvem tanto a mente e não são explicáveis pelo nosso melhor conhecimento sobre a realidade material, a mente deve ter uma natureza para além do físico para causar esses fenômenos.
[Frank]
Isso mesmo. Vc pegou o ponto da coisa.
[Laira]
Agora deixa eu te perguntar: existem desvantagens ou objeções a esse dualismo?
[Frank]
Mas é claro! Uma dificuldade dessa teoria está nela ser difícil de ser investigada cientificamente – assim, de maneira direta. Como a mente é descrita como algo não físico e a ciência lida apenas com o mundo físico, só é possível investigar os efeitos da mente no mundo por meio dos nossos corpos. Como não é possível estudar diretamente a mente, o dualismo cartesiano não nos ajuda a entendê-la da melhor maneira possível.
[Laira]
É… Isso realmente é um problema.
[Frank]
Uma uma outra objeção ao dualismo cartesiano está na dependência facilmente observável da nossa mente em relação ao cérebro. Se a mente é distinta e não física, dependendo apenas do nosso cérebro pra receber os dados dos sentidos e pra servir de caminho para a execução das vontades da mente, então o que acontece com o nosso corpo – e principalmente com o nosso cérebro – não afeta a nossa mente. Só que o que ocorre é exatamente o oposto. Nós ingerimos diversas substâncias que afetam o nosso cérebro e, ao afetá-lo, afetam as nossas emoções, raciocínios e consciência. Ou seja: afetam aquilo que as pessoas enxergam como… mente. Um exemplo super cotidiano disso é quando bebemos e ficamos bêbado.
[Laira]
E a psiquiatria conhece centenas de produtos químicos que conseguem controlar as nossas emoções.
[Frank]
No fim, o nosso conhecimento cotidiano e científico aponta para o contrário do que defende o dualista cartesiano: a nossa mente depende do nosso cérebro e das suas atividades neurais.
Bloco 4
[Laira]
Acho esse dualismo cartesiano de uma complicação…
[Frank]
Tô contigo, Laira. Acho essa teoria meio contraintuitiva ou que adiciona coisas demais pra explicar algo não tão complicado assim. MAS… uma teoria alternativa seria o behaviorismo.
[Laira]
Pensando, bem eu já ouvi falar por aí do behaviorismo…
[Frank]
Ah: então tu conhece ela?
[Laira]
Não, não: só já ouvi falar dela por aí. Mas nunca fui atrás pra saber exatamente o que é.
[Frank]
Olha: o behaviorismo é a teoria trabalha com o comportamento. Mais precisamente, o behaviorismo busca analisar e compreender os nossos comportamentos e seus padrões, sejam eles públicos ou potenciais, de modo a conseguir descrevê-los sem apelar a entidades ou estados mentais internos – como crenças, emoções, desejos ou sensações.
[Laira]
Então a maneira como a gente fala do que acontece na nossa mente é inválida? Não faz sentido??
[Frank]
Nós falamos do que nos ocorre internamente apenas como uma forma abreviada de descrever o nosso comportamento ou a tendência de nos comportarmos de certa maneira.
[Laira]
Huuummmm….
[Frank]
No behaviorismo, o interesse está em descrever o comportamento observado – ou um provável comportamento – em uma sentença – não importa no quão longa e complexa essa sentença possa vir a ser.
[Laira]
Me dá um exemplo.
[Frank]
Um exemplo seria o ato de sentir uma dor. Descrever esse comportamento depende do nível da dor, pois a pessoa que sente dor pode estar inquieta, gemer, chorar, gritar e por aí vai.
[Laira]
Deixa eu te perguntar uma coisa pra ver se entendi bem o que tu me falou até aqui.
[Frank]
Pergunte.
[Laira]
Quando a gente fala sobre a mente de uma pessoa, para o behaviorista não existe esse negócio de mente e por isso, na verdade, a gente tá falando das suas capacidades comportamentais e das suas disposições.
[Frank]
Exatamente isso. Pro behaviorismo, o problema mente-corpo é um pseudoproblema – ou entende que a teoria dissolve esse problema filosófico.
[Laira]
Huuummm… interessante.
[Frank]
Gostou do behaviorismo?
[Laira]
Primeiro eu quero saber se o behaviorismo tem algum problema ou objeção.
[Frank]
Tem sim! Uma das objeções a teoria está nela ignorar ou negar o que em de interno aos nossos estados mentais. Sentir dor, por exemplo, não é apenas estar inclinado a chorar ou gritar, mas também é senti-la internamente – ou seja: existe uma certa natureza intrínseca não somente em relação a dor, mas também a outras coisas. Uma teoria da mente que ignorar ou negar essa sensação ou experiência interna é, no mínimo, negligente, não explicando algumas coisas de forma completa.
[Laira]
É… pensando por esse lado, concordo com a objeção. Agora: acho que consegui pensar numa objeção.
[Frank]
Pois diga.
[Laira]
Tipo: o behaviorismo não consegue distinguir uma pessoa que esteja sentindo dor de verdade de uma pessoa que está fingindo estar com dor. A pessoa que está fingindo pode fingir tão bem esse comportamento que uma outra pessoa pode não conseguir saber que ela não está com dor.
[Frank]
Huummm…
[Laira]
O que acha?
[Frank]
Eu reconheço que essa é uma objeção ao behaviorismo, mas acho que é possível pensar numa resposta a ela. O behaviorista pode afirmar que a pessoa que está fingindo dor não está passando exatamente pela dor que alega estar sentindo. A pessoa que finge pode não estar sentindo as mudanças fisiológicas que o corpo gera em relação a dor – ainda que ela saiba copiar muito bem o comportamento de quem sente dor.
[Laira]
Huuummm… é verdade.
Encerramento
[Laira]
Olá, gente! Eu sou Laira Maressa, sou estudante de biomedicina e pesquisadora da Fiocruz Amazônia.
[Frank]
Olá, pessoas esclarecidas! Aqui quem fala é Frank Wyllys e sou tanto filósofo público quanto tenho TDAH.
[Laira]
Esse é o décimo episódio da terceira temporada do podcast onde trato de boa parte dos mais conhecidos problemas filosóficos que perpassam o cotidiano das pessoas. Além disso, vale destacar que essa é uma temporada 100% financiada pela Manauscult por meio do edital de cultura de nome Thiago de Mello na sua versão novos Talentos. Fica registrado meus agradecimentos a Manauscult pela oportunidade e pela premiação em dinheiro.
[Frank]
Dito isto, o episódio está embasado em algumas referências e vale destacar parte delas. Uma dessas referências é o capítulo “Mente” do livro de título “Elementos básicos de filosofia”. O autor do capítulo e do livro é o filósofo Nigel Warburton e a editora do livro é a Gradiva. Uma outra referência seria o capítulo “O problema ontológico (o problema mente-corpo)” do livro “Matéria e consciência: uma introdução contemporânea à filosofia da mente”. O autor do capítulo e do livro é o filósofo Paul M. Churchland e a editora do livro é a Editora UNESP. Ainda uma outra referência seria o capítulo “Filosofia da Mente” do livro de título “Filosofia: Uma Introdução por Disciplinas”. A autora do capítulo é a filósofa Sara Bizarro e a editora do livro é a Edições 70.
[Laira]
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[Frank]
Isso é tudo por hoje, pessoal.
Até o próximo episódio!
[Laira]
Tchau tchau!