O que é real? (S03E03) – Transcrição

Transcrição do terceiro episódio da terceira temporada publicado no dia 1 de setembro de 2023.

Bloco 1

[Laira]
E aí, parceiro? Tudo certo?
[Frank]
Oi, Laira! Tô bem sim!
[Laira]
Demorei muito?
[Frank]
Não, não…
[Laira]
Ainda bem! Achei que uma aula minha iria demorar mais, mas acabou bem a tempo!
[Frank]
E aí: o que tu queria conversar?
[Laira]
Ah: é que eu tava vendo Matrix e aí acho que levei a sério demais uma parte do filme.
[Frank]
É a primeira vez que vê esse filme?
[Laira]
Sim!
[Frank]
Os mais novos geralmente não falam mais desse filme ou nunca o viram. Estou surpreso! Você é uma geração Z diferenciada mesmo.
[Laira]
Deixa eu te mostrar a parte que me fez ficar encacucada…
[Frank]
Olha só: voltou ao catálogo da Netflix! Achei que tava só na HBO Max.
[Laira]
Ainda bem que tá na Netflix, né, pq assim eu posso baixar offline pra te mostrar.
[Frank]
É verdade. A internet na UFAM é péssima.
[Laira]
Aqui, ó:
[Trecho do filme Matrix é reproduzido]
[Frank]
Huuuummmm…..
[Laira]
E aí: isso é filosófico ou não?
[Frank]
É filosófico sim, Laira. É sim.
[Laira]
Quando eu vi essa parte eu fiquei, tipo, e se…
[Frank]
Bom: então você quer saber sobre o que é real e como a gente sabe o que é real?
[Laira]
Isso mesmo. Agora tu formulou bem o que fiquei pensando ontem de noite.
[Frank]
Eu tenho algumas coisas pra te falar, sobre, sim.
[Laira]
Ótimo!
[Frank]
Vamos ali lanchar que a gente vai conversando enquanto a gente come.
[Laira]
Vamos!

Bloco 2

[Frank]
Vamos… por partes. Tipo: o que é a realidade?
[Laira]
Tá perguntando pra mim?
[Frank]
Tô sim
[Laira]
PUTS!
[Frank]
O que você acha que é a realidade. O que cabe nesse conceito?
[Laira]
Eu acho.. que a realidade é tudo o que existe, tudo o que há.
[Frank]
Sua resposta está no caminho certo. Podemos dizer sim que a realidade é aquilo que há. Agora: o que há? Aí que tá o pulo do gato.
[Laira]
Ué: mas perguntar o que há não é a mesma coisa que perguntar o que é a realidade?
[Frank]
Não, não: perguntar o que há significa perguntar o que existe na realidade. A gente pode dizer que a realidade existe, né, mas podemos dizer que certas coisas na realidade não existem – podem ser coisas criadas pela gente, por exemplo.
[Laira]
Eu… não tô entendo muito bem, olha.
[Frank]
Vamos fazer um salto aqui e quem sabe tu consiga entender melhor. Existe uma teoria na filosofia, uma teoria metafísica, chamada realismo. O realismo defende que algo existe independente da gente, da nossa mente.
[Laira]
Huuummmm….
[Frank]
O realismo na verdade é uma família de teorias, um conjunto. Ou seja: é mais comum você ser realista sobre um determinado assunto do que ser um realista mais global, sabe, um realista sobre tudo.
[Laira]
Me dá um exemplo aí preu entender bem.
[Frank]
Você pode ser uma realista moral, por exemplo. Tipo: você pode ser uma pessoa que defende que existem fatos morais e que eles são objetivos. Se você diz que o aborto é errado, você diz algo que é verdadeiro ou falso e que independe de gostos pessoais ou de convenções sociais.
[Laira]
Huuuuummmmmm….. agora to entendendo
[Frank]
Aí a gente pode perguntar: o que há? Números? Seres imaginários? Outras mentes? e por aí vai.
[Laira]
E como essa parada de realismo tem a ver com o trecho do filme que te mostrei?
[Frank]
Bom: o trecho do filme foca mais no realismo epistêmico.
[Laira]
E o que é isso?
[Frank]
O realismo epistêmico trata de uma… relação entre o conhecimento e o nosso contato com o mundo, a realidade. Tipo: o que a gente percepciona por meio dos nossos sentidos é exatamente como a gente os percepciona? Por exemplo: essas cadeiras em que estamos sentados, essa mesa entre nós, que estamos vendo e sentindo, elas existem mesmo? A gente está usando os nossos sentidos direito pra percepcionar elas e dizer que elas existem mesmo?
[Laira]
Huuummmmm… É: é meio que nesse sentido que começa o questionamento do Morpheus pro Neo.

Bloco 3

Vamos começar do começo. Pra tu ter uma boa noção introdutória sobre essa discussão mais epistêmica do realismo, acho que falar de realismo direto, indireto e idealismo parece ser o suficiente.
[Laira]
Você que sabe, meu caro. Fala aí que eu vou tentar te acompanhar.
[Frank]
Vamos lá: quais são os nossos sentidos?
[Laira]
Ah isso aí é fácil: visão, audição, tato, olfato e paladar.
[Frank]
E você acha que, com esses sentidos, consegue percepcionar bem o mundo ao seu redor?
[Laira]
Olha: eu acho que sim. Nunca parei pra pensar muito sobre, mas sim: acho que consigo sim.
[Frank]
Outra pergunta: você acha que as coisas ao seu redor são separadas de você?
[Laira]
Mas é claro que sim!
[Frank]
E você tem contato com eles através dos seus sentidos?
[Laira]
Com certeza.
[Frank]
Bom: você pode não saber, mas já está tomando uma posição. Você adota o que chamamos na epistemologia de realismo direto ou realismo ingênuo.
[Laira]
Olha só… e como se caracteriza essa posição?
[Frank]
Digamos que o realismo direto defende que existe um mundo externo a nós, temos contato direto com esse mundo e esse mundo é exatamente como o percepcionamos.
[Laira]
Tu tá chamando de mundo a realidade? Tá tratando os dois como sinônimos?
[Frank]
Tô sim.
[Laira]
Ah…
[Frank]
Aí a gente conhece esse mundo por meio dos nossos sentidos de maneira direta. Tipo: a gente sabe que estamos sentados aqui, com uma mesa entre nós, nós sentimos a cadeira onde estamos sentados, nós vemos a mesa e parte da cadeira onde estamos e por aí vai.
[Laira]
Não existe nada entre a gente e o mundo… É: é meio que essa a teoria que acabei de descobrir que estou já considerando. Na verdade, meio que vejo as pessoas num geral já assumindo isso aí, sabe…
[Frank]
Tá falando que essa é uma posição filosófica standard, um padrão?
[Laira]
Sim, sim: isso mesmo.
[Frank]
Bom: não é difícil imaginar o porque, né. É simplesmente a explicação mais simples pra parada.
[Laira]
E esse realismo direto: tem alguma objeção a ele?
[Frank]
Tem sim! E são duas objeções – mas elas estar interrelacionadas.
[Laira]
Elas são deboa pra entender?
[Frank]
São sim! Essas objeções são em relação aos erros perceptuais que temos. Num tem vezes que os nossos sentidos nos enganam?
[Laira]
Tem sim!
[Frank]
Poisé. Temos, de erro perceptual, as ilusões e as alucinações. A gente pode olhar pra alguém lá longe e pensar ser uma pessoa x, mas quando chegar perto ser uma pessoa y. A nossa vista nos iludiu. A gente pode também tomar um remédio que pode nos deixar crazy crazy, sabe, fazer a gente ver e ouvir coisas – mas isso ser só coisa da nossa cabeça por causa do efeito do remédio.
[Laira]
Esses erros aí da nossa percepção, olha… realmente são objeções.
[Frank]
Né? As ilusões e percepções nos fazem perder a nossa confiança nos nossos sentidos.
[Laira]
Mas aí não é pra tanto, né. As vezes ele falha mas na maioria das vezes funciona bem. Como ele mais funciona bem, então tá tudo certo.
[Frank]
Bem pensado. Essa é uma boa resposta ao espírito geral das objeções. Mas existem respostas específicas pra cada um dos erros perceptivos. Por exemplo: em relação a ilusão, ela acontece pq a nossa percepção é complexa. Ou seja: os órgãos do nosso corpo responsáveis pelos nossos sentidos são complexos. E a complexidade deles pode acabar levando a alguns erros – e as ilusões viriam daí.
[Laira]
Nossos sentidos nem sempre são precisos num é mesmo?
[Frank]
Exatamente. Agora: a outra objeção foca nas alucinações. E tipo: alucinar não é considerado uma experiência perceptiva. É parecido, mas não é. É tipo um sonho, saca? Então alucinar seria uma experiência do tipo não-perceptiva.
[Laira]
Huuummmm…
[Frank]
Que foi?
[Laira]
Essa resposta a alucinações… não fiquei convencida, olha.
[Frank]
Tá tudo bem: ainda tenho mais duas teorias pra te apresentar.

Bloco 4

[Laira]
Qual é a outra teoria?
[Frank]
A outra é o realismo indireto. No realismo indireto ainda existe um mundo externo a nós, mas o que muda e a forma como conhecemos esse mundo. Como o próprio nome diz, o nosso contato, o nosso conhecimento do mundo é indireto.
[Laira]
Como assim indireto?
[Frank]
No realismo indireto, o mundo nos causa impressões – que aqui vou chamar de dados dos sentidos. O que conhecemos do mundo são os dados dos sentidos de tudo que existe no mundo. O nosso contato com o mundo se dá por meio dos dados dos sentidos.
[Laira]
Eu… não tô entendo muito bem. Pode me dar um exemplo?
[Frank]
Tá vendo essa mesa aqui entre a gente? A gente não está vendo diretamente essa mesa: a gente tá vendo uma imagem, uma representação mental da mesa que foi gerada pela nossa visão. Em relação as cadeiras que estamos sentados, além da parte visual, nós estamos gerando uma representação mental dela por meio do nosso tato: esse sentido nos fornece dados sobre certas características dela – como formato, conforto e tudo mais.
[Laira]
Deixa eu ver se eu entendi direito. O mundo existe. Ponto. Só que a gente, por meio dos nossos sentidos, está em contato indireto com ele, certo?
[Frank]
Isso.
[Laira]
E aí, por causa desse contato indireto, a que a gente percepciona não são as coisas diretamente, mas sim uma representação na nossa mente das coisas no mundo?
[Frank]
Isso mesmo. Essa mesa aqui existe. A gente sabe que tem uma mesa aqui porque a gente gera na mente um objeto do tipo cadeira. A geração desse mesa se dá por meio dos dados dos nossos sentidos: nossa visão, nosso tato etc. E ai esses dados geram um objeto, uma representação na nossa mente da cadeira. A gente só conhece os dados dos sentidos da cadeira e não a cadeira diretamente.
[Laira]
Caralho mas que complicado. Mas eu entendi a parada do indireto. Demorou mas eu entendi.
[Frank]
Entendeu mesmo?
[Laira]
Entendi, entendi.
[Frank]
Olha lá, em?
[Laira]
Esquenta não que a mãe é potente.
[Frank]
Agora: uma vantagem do realismo indireto em relação ao indireto está nele conseguir considerar e explicar os erros perceptuais. Uma ilusão, por exemplo, é diferente da experiência perceptiva verídica. Porque? Porque os dados dos sentidos que geram a representação mental na nossa mente são diferentes das características, das propriedades de uma coisa. Quando a gente enfia uma vareta na água, num parece que a vareta entorta ou fica quebrada?
[Laira]
Verdade. Ela faz imediatamente uma tangente.
[Frank]
Exato. Nesse caso os dados dos nossos sentidos estão errados em relação a vareta fazer essa tangente. A vareta continua reta: os nossos dados sentidos, por causa da água, é que estão errados.
[Laira]
Huuuummmm… No caso, as ilusões, no realismo indireto, são apenas os dados dos nosso sentidos errados em relação a coisa. Aí a gente que fica errado porque acabamos ficando com uma representação mental distorcida da coisa. É isso?
[Frank]
Exato, Laira! Exato. É isso aí! Bate 10!
[Som de palmas da mão se encontrando rapidamente]
[Laira]
E com relação as alucinações? Como é que fica a parada?
[Frank]
Bom: é o mesmo erro da ilusão, só que mais extremado. Ou seja: a alucinação acaba sendo distinta da experiência perceptiva verídica porque ela não corresponde em nada ou quase nada na realidade.
[Laira]
Entendiiii…
[Frank]
Agora: esse realismo enfrenta é alguns problemas. Um deles é o de justamente o mundo ser conhecido indiretamente. Se a gente só o conhece indiretamente, então como é que a gente tem certeza que a gente tá conhecendo o mundo direito? É complicado, sabe…
[Laira]
Não dá pra ter 100% de certeza, né?
[Frank]
Exatamente. A gente só conhece de verdade as nossas representações mentais dos dados dos nosso sentidos. Como é que a gente vai comparar essas representações com as coisas no mundo, pra conferir se estamos conhecendo bem? Complicado. E como se isso não bastasse, esse contato indireto ainda abre espaço pro ceticismo. Se não temos garantia completa de que estamos em contato com o mundo, será mesmo que estamos conhecendo o mundo? Pode ser que não exista um mundo exterior, né, e sim só os dados dos nossos sentidos.

Bloco 5

[Laira]
Agora só falta mais uma teoria.
[Frank]
Falta só o idealismo.
[Laira]
Isso mesmo. Como esse idealismo explica o nosso conhecimento do mundo, do que é real?
[Frank]
O idealismo defende que o mundo se constitui a partir da nossa percepção dele. Ou seja: o mundo só existe quando percepcionamos ele.
[Laira]
Isso é bem diferente das outras teorias.
[Frank]
Verdade. No idealismo não é suposto que exista um mundo além daquilo que percepcionamos.
[Laira]
Mas agora me veio uma dúvida…
[Frank]
Diga.
[Laira]
Quando a gente não está percepcionando algo, ele some? As coisas só existem quando está ao alcance dos nossos sentidos? Porque se eu olhar pra cima, não vai mais existir essa mesa aqui na minha frente.
[Frank]
Muito bem observado. Como o idealismo responde a isso? Simples: com Deus.
[Laira]
Sério?
[Frank]
Seríssimo! Deus é visto como um observador permanente. Aí, por causa disso, ele assegura a existência de todas as coisas no mundo. Por isso as coisas no mundo continuam a existir mesmo quando a gente não tá percepcionando eles.
[Laira]
Iiiihhhhhhhhhhhh.. sei não, em?
[Frank]
O que foi?
[Laira]
Deixa eu te fazer uma pergunta: o idealismo dá conta dos erros de percepção lá?
[Frank]
Não dá conta. Tipo: só faz sentido falar de erro perceptivo se houver mundo exterior. No idealismo não tem mundo superior. Só que não é pq tu não supõe que não exista mundo exterior que os erros perceptivos param de existir imediatamente: a gente ainda pode se iludir ou alucinar.
[Laira]
Era sobre isso que ia comentar. Se a gente percepciona o mundo e ainda é iludido ou, na pior das hipóteses, alucina, então o problema é Deus!
[Frank]
Muito bem notado, Laira. É nesse caminho que temos uma objeção ao idealismo. Além da objeção dele não dar conta dos erros perceptuais, apelar a Deus faz é piorar a situação pra ele. Se tem Deus no meio é porque ele nos criou. Se ele criou nosso aparato perceptivo e a gente erra, como é que um deus todo-poderoso e sumamente bom nos criou de modo a sermos suscetíveis a ilusões e alucinações?
[Laira]
Exatamente!!!
[Frank]
Parece que, mais uma vez, Deus não é essa coca-cola toda…
[Laira]
Mas também: ficam colocando a conta em Deus. Aí só dá pro dele.

Encerramento

[Laira]
Olá, gente! Eu sou Laira Maressa, sou estudante de biomedicina e pesquisadora da Fiocruz Amazônia.
[Frank]
Olá, pessoas esclarecidas! Aqui quem fala é Frank Wyllys e sou tanto filósofo público quanto tenho TDAH.
[Laira]
Esse é o terceiro episódio da terceira temporada do podcast onde trato de boa parte dos mais conhecidos problemas filosóficos que perpassam o cotidiano das pessoas. Além disso, vale destacar que essa é uma temporada 100% financiada pela Manauscult por meio do edital de cultura de nome Thiago de Mello na sua versão novos Talentos. Fica registrado meus agradecimentos a Manauscult pela oportunidade e pela premiação em dinheiro.
[Frank]
Dito isto, o episódio está embasado em algumas referências e vale destacar parte delas. Uma dessas referências é o verbete “Realismo/Anti-realismo” do “Compêndio em Linha de Problemas de Filosofia Analítica”. O autor do verbete é o filósofo Eduardo Castro. Uma outra referência seria o capítulo “Realismo e anti-realismo” do livro de título “Metafísica: conceitos-chave em filosofia”. O autor do livro é o filósofo Brian Garret e a editora do livro é a Artmed. Ainda uma outra referência seria o capítulo “O mundo exterior” do livro de título “Elementos básicos de filosofia”. O autor do capítulo é o filósofo Nigel Warburton e a editora do livro é a Gradiva.
[Laira]
Por fim, siga o podcast na internet! Você pode fazer isso nos seguindo no seu aplicativo ou serviço favorito de podcast – Spotify, Google Podcasts, Deezer, Amazon Music ou Castbox – ou nos seguindo nas redes sociais: no Facebook, Instagram e TikTok é @esclarecimentop – tudo junto e minúsculo – e no Twitter é @esclarecimento_ – tudo junto e minúsculo também.
[Frank]
Isso é tudo por hoje, pessoal.
Até o próximo episódio!
[Laira]
Tchau tchau!


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