O que é ciência? (S03E09) – Transcrição

Transcrição do nono episódio da terceira temporada publicado no dia 13 de outubro de 2023.

Bloco 1

[Laira]
Poisé, Frank. A técnica Crispr, no geral, é uma técnica onde a gente pode editar o DNA e fazer modificações genéticas precisas.
[Frank]
Bom: isso pra mim soa como algo revolucionário.
[Laira]
Essa capacidade de editar o DNA abre um mundo de possibilidades na área da genética e da medicina. Poder corrigir mutações genéticas e até mesmo eliminar doenças hereditárias é algo, assim, muito surpreendente.
[Frank]
Do caralho mesmo.
[Laira]
Eu, durante a palestra mesmo, fui ficando empolgada com essa parada. Tipo: a ciência avança a medicina, trazendo enormes benefícios para a saúde e o bem-estar das pessoas.
[Frank]
O que será que o futuro nos reserva, né?
[Laira]
A impressão que fica, sendo que eu já tive isso várias vezes antes de entrar em medicina, é que a ciência não para de avançar com suas descobertas e inovações. Sem a ciência a medicina não teria progredido tanto e não seríamos capazes de salvar tantas vidas como conseguimos hoje.
[Frank]
Eu fiquei mais curioso sobre os aspectos éticos dessa técnica, olha. Porque editar DNA me parece ser algo delicado demais… Mas, que mal me pergunte, acho que tenho que te fazer uma pergunta que antecede essa minha curiosidade.
[Laira]
E qual é a pergunta?
[Frank]
O que você entende por ciência?
[Laira]
PUTS agora tu me pegou. Eu só consigo dizer que tenho uma noção de coisas que fazem parte dela e sei o básico do básico de como ela é feita, mas não sei te dar uma resposta assim de supetão não.
[Frank]
Poisé… A ciência avança e tudo mais, mas pode ser que a gente tenha noções distintas de ciência. Aí pra evitar qualquer problema é bom a gente entrar em acordo sobre uma noção única desse conceito.
[Laira]
Eu não sei o que te responder. O que é ciência pra você?
[Frank]
Vish: eu também não sei, olha…
[Laira]
Agora fudeu de vez k
[Frank]
Mas, assim: eu posso te falar sobre alguns dos esforços feitos até aqui pra chegar a um conceito de ciência. Isso serve?
[Laira]
Serve, sim.
[Frank]
Não me responsabilizo se a gente não chegar a lugar nenhum
[Laira]
Que isso: tá dando spoiler da parada?
[Frank]
Não, não: tô só avisando…
[Laira]
Beleza.

Bloco 2

[Frank]
Olha, Laira: eu vou direcionar a nossa conversa sobre o que é ciência para o problema da demarcação.
[Laira]
Tá. Só que… eu não sei o que é esse problema. O que é o problema da demarcação?
[Frank]
Bom: pode-se dizer que o problema da demarcação é um dos problemas centrais da filosofia da ciência e que busca definir uma fronteira entre o que é e o que não é ciência.
[Laira]
Mas vale a pena buscar saber o que é ciência?
[Frank]
Eu diria que sim, olha… seja de um ponto de vista teórico ou de um ponto de vista prático.
[Laira]
Fale mais sobre.
[Frank]
Olha: de um ponto de vista teórico, é meio que natural a filosofia da ciência buscar saber exatamente o que é a ciência. Tipo: saber o que é ciência ajuda a filosofia da ciência porque saber o que ela é permite que se tenha uma concepção bem clara do seu objeto de estudo e de qual é o seu domínio de aplicação.
[Laira]
Entendo… mas acho que essa importância aí é restrita a poucas pessoas, né…
[Frank]
Concordo. Inclusive acho que a maior importância do problema da demarcação está nas suas implicações práticas.
[Laira]
Por que tu acha isso? Achei que a parte teórica seria mais importante….
[Frank]
É que, assim: de um ponto de vista prático, é muitíssimo importante ter uma concepção clara do que é ciência. A ciência tem uma importância gigantesca – pincipalmente na sociedade contemporânea. A ciência, atualmente, é também investida de autoridade e responsabilidades especiais. Por exemplo: é importante saber em que especialistas confiar, que projetos de investigação financiar, que conhecimento teórico ensinar em sala de aula e pro aí vai.
[Laira]
Aaaaaahhhhh sim. Agora tô começando a entender.
[Frank]
E digo mais: muitas áreas do conhecimento realizam investigações de maneira científica e essas investigações trazem grandes benefícios a sociedade. Sem a ciência não teríamos vacinas, nem a internet, não teríamos computadores e nem mesmo teríamos chegado à lua, assim como não teríamos políticas públicas melhores ou até mesmo conhecimento dos mais vários preconceitos que perpassam a humanidade atualmente – como o racismo, o machismo ou a homofobia.
[Laira]
Isso tudo é ciência, né…
[Frank]
Isso tudo é ciência. Exato.
[Laira]
Uma coisa que eu pensei aqui é que buscar uma definição do conceito de ciência também vai ajudar a orientar os países em relação a despesa de recursos públicos em projetos e investigações científicas.
[Frank]
Exatamente. Esse retorno traz a sociedade conhecimentos que irão contribuir com a mesma – desde ciência básica até a ciência aplicada.

Bloco 3

[Laira]
Que respostas o problema da demarcação recebeu?
[Frank]
Muitas, Laira, principalmente no século XX, mas vou falar aqui de três deles de forma bem sintética – só pra dar um panorama da coisa.
[Laira]
Certo. E vai começar por qual resposta?
[Frank]
Eu vou começar pelo positivismo lógico.
[Laira]
E o que foi isso aí?
[Frank]
Assim: em linhas muitos gerais o positivismo lógico foi um movimento filosófico que começou ali no final da década de 20 do século XX e que foi formado por filósofos, cientistas e matemáticos da época.
[Laira]
E o que esse movimento tem a ver com o problema da demarcação?
[Frank]
Uma ideia central do positivismo lógico em relação a esse problema está no princípio ou critério da verificabilidade. Mas antes de chegar a essa ideia vai ser preciso entender como eles entendiam as afirmações. Existem as afirmações analíticas e as sintéticas. As afirmações analíticas são aquelas que são verdadeiras ou falsas em virtude da sua estrutura lógica ou do significado dos seus termos. A matemática e a lógica são exemplos de áreas que contém afirmações analítica, como por exemplo “Todo homem solteiro é não-casado” ou “Um quadrado tem quatro lados iguais”.
[Laira]
E as sintéticas?
[Frank]
As afirmações sintéticas são aquelas onde só é possível saber se são verdadeiras ou falsas caso seja possível verificá-los por meio da experiência.
[Laira]
Huuummm…. beleza
[Frank]
O princípio da verificabilidade advoga que o conhecimento científico está restrito as afirmações sintéticas, ou seja: as afirmações científicas são verdadeiras ou falsas a depender do que resultar dos testes empíricos em cima dessas afirmações.
[Laira]
Então o conhecimento científico só é científico caso seja verificável?
[Frank]
Isso mesmo. É dessa forma que os positivistas lógicos separam a ciência da não-ciência.
[Laira]
Olha… eu gostei dessa resposta. Ela apresenta uma forma bem clara de demarcar as coisas… mas ao mesmo tempo achei a ideia simplista demais.
[Frank]
Achou simples?
[Laira]
Achei.. Mas vai que é só impressão minha, né. Agora: essa resposta apresenta algum problema?
[Frank]
Sim, sim. O problema da verificabilidade está em considerar a confirmação por meio de testes empíricos das afirmações científicas de forma isolada. Quando um cientista ou uma equipe de cientistas vai testar se uma certa afirmação científica é verdadeira ou falsa, todo um conjunto de outras afirmações auxiliares são supostas. Os aparelhos usados no teste tem de estar funcionando, todo um certo conjunto de conhecimentos científicos são assumidos durante o desenho do teste e por aí vai. Ou seja: a verificação de uma afirmação científica nunca é feita de forma individual: toda uma série de afirmações interconectadas são confirmadas ou dadas como confirmadas para que ocorra a verificação da afirmação em teste.
[Laira]
Huuummm… isso realmente é um problema: ao invés de ir testando afirmação por afirmação, na verdade tu acaba testando mais de uma coisa… É: o princípio usado parece ser realmente simples e ignora o funcionamento de alguns aspectos fundamentais da ciência.
[Frank]
Poisé: não era só uma impressão sua o que tu tinha dito aindagora.
[Laira]
As vezes a mãe aqui é experta demais.

Bloco 4

[Frank]
Vamos seguir adiante.
[Laira]
Vamos.
[Frank]
Uma alternativa ao verificabilidade dos positivistas lógicos seria a falseabilidade proposta pelo filósofo Karl Popper. Tipo: a verificação de uma afirmação sintética, ao invés de apenas levar a sua verificação, geralmente leva a um grande número de verificações. A falseabilidade vai por um outro caminho: uma ou mais hipóteses de uma teoria científica são concebidas de modo a serem testadas e refutadas. Caso essas hipóteses resistam a refutação, então a teoria científica relacionada a essas hipóteses é verdadeira. Só as teorias científicas são formuladas de maneira a observações empíricas serem capazes de torná-las falsas, apresentando casos ou aspectos proibitivos.
[Laira]
Essa parte proibitiva seria, por exemplo, a teoria não ser válida se acontecer X ou Y? É isso??
[Frank]
É isso aí mesmo.
[Laira]
Então uma teoria que resistiu a esses testes empíricos visando a refutação da teoria teriam um alto grau de verdade, de corroboração com o que de fato acontece no mundo.
[Frank]
Isso mesmo, Laira. Uma teoria assim deve ser tomada como aquela que oferece a melhor explicação disponível para um determinado fenômeno, sendo desconsiderada a partir do momento que surgir uma outra teoria científica que a supere.
[Laira]
Então uma teoria que não é científica seria aquela que nada proíbe, ou seja: ela é… irrefutável?
[Frank]
Isso mesmo: as teorias pseudocientíficas são formuladas de uma maneira ambígua ou aberta. Isso faz com que esses tipos de teorias sejam irrefutáveis, pois acomodam todos os indícios possíveis – mesmo os mais contraditórios. No fim, teorias não científicas são imunes ao fracasso, pois não há teste empírico que as desbanque.
[Laira]
Acho que pensei aqui em uma objeção em potencial a falseabilidade…
[Frank]
Opa! Diga lá pq teu faro pra filosofia é bom.
[Laira]
Não é porque uma ou mais hipóteses de uma teoria se mostraram falsas que uma teoria científica está errada. Mesmo que os testes empíricos apresentem evidências em contrário a uma teoria científica, as vezes não é um problema conservar essa teoria posta em prova. Quem sabe não seja o caso, né, de modificar alguma hipótese pra depois testá-la de novo ou porque a teoria é muito importante e muito bem testada, onde um novo teste apresentando evidência em contrário não a derrotaria por inteiro…
[Frank]
Estou de pleno acordo, Laira. Por isso que eu te disse uma vez: tu deveria investir em filosofia, olha…

Bloco 5

[Laira]
Vc vai falar de mais respostas ao problema da demarcação?
[Frank]
Eu até gostaria, mas logo a minha aula começa. Aí num vou ter como te falar agora de mais respostas…
[Laira]
Poxa… isso é triste.
[Frank]
Depois eu te mando uns livros em PDF de filosofia da ciência pra tu ler. Pode ser?
[Laira]
Vou cobrar, em?
[Frank]
Pra fechar o assunto, né, tem um filósofo chamado Larry Laudan que advoga um ceticismo em relação a possibilidade de resolver o problema da demarcação. Ou seja: ele não bota muita fé de que seja possível apresentar um conjunto de condições necessárias e suficientes que definam o que é ciência, distinguindo-a do que não e ciência. Houveram muitas tentativas durante o século XX, mas nenhuma delas chegou a uma definição satisfatória de ciência, que não sofresse de problemas graves. Ou seja: o problema da demarcação ainda está em aberto.
[Laira]
Considerando o quanto a ciência é ampla, né, consigo imaginar o quão difícil é dar essa definição… Tipo: é mais fácil falar em ciências: ciências naturais, humanas, exatas, da saúde e por aí vai.
[Frank]
Cada área do conhecimento tem o seu próprio método, onde só alguns processos são compartilhados por mais de uma área do conhecimento científico.
[Laira]
E com tamanha variedade de áreas e métodos, fica muito difícil apresentar uma definição de ciência que abarque todas elas.
[Frank]
Esse ceticismo do Laudan, com base nessa visão de como é difícil definir ciência, acabou por fazê-lo encarar o problema da demarcação como algo… morto sabe…
[Laira]
Entendo. Na medida do possível eu entendo. Mas… ainda sim fico muito receosa de deixar para trás o problema da demarcação.
[Frank]
Porque?
[Laira]
É porque não mais ligar pro problema da demarcação é socialmente insatisfatório, sabe…
[Frank]
Elabora mais a essa sua resposta
[Laira]
É só lembrar do que tu me disse lá no início sobre a importância prática do problema da demarcação, de se saber o que é ou não ciência e da importância social disso.
[Frank]
Aaaaaahhhhh siiimm… Certo. É verdade. Seu ponto é a principal objeção a proposta de dissolução do problema da demarcação pelo Laudan: como é importante saber, de um ponto de vista social e político, o que é ciência, ainda que não se tenha chegado a uma definição de ciência, não se deve deixar esse problema de lado.
[Laira]
Muito dinheiro é gasto em ciência e é muito importante que se ensine nas escolas o conhecimento científico mais basilar acumulado até aqui pelo ser humano, assim como a gente deve saber em que especialistas da ciência confiar pra nos guiar na produção de políticas públicas. Enfim: é muito insatisfatório deixar esse problema de lado.
[Frank]
Concordo. Estou de pleno acordo com você. Mas agora eu tenho que ir pra aula.
[Laira]
Poxaaa… tá bom, Frank. Boa aula pra você.
[Frank]
Valeu. Boa janta pra tu no RU!
[Laira]
Só espero que a comida esteja boa!

Encerramento

[Laira]
Olá, gente! Eu sou Laira Maressa, sou estudante de biomedicina e pesquisadora da Fiocruz Amazônia.
[Frank]
Olá, pessoas esclarecidas! Aqui quem fala é Frank Wyllys e sou tanto filósofo público quanto tenho TDAH.
[Laira]
Esse é o nono episódio da terceira temporada do podcast onde trato de boa parte dos mais conhecidos problemas filosóficos que perpassam o cotidiano das pessoas. Além disso, vale destacar que essa é uma temporada 100% financiada pela Manauscult por meio do edital de cultura de nome Thiago de Mello na sua versão novos Talentos. Fica registrado meus agradecimentos a Manauscult pela oportunidade e pela premiação em dinheiro.
[Frank]
Dito isto, o episódio está embasado em algumas referências e vale destacar parte delas. Uma dessas referências é o capítulo “Demarcação” do livro “Introdução à filosofia da ciência”. A autora do capítulo e do livro é a filósofa Lisa Bortolotti e a editora do livro é a Gradiva. Uma outra referência seria o verbete traduzido da Enciclopédia Stanford de Filosofia de título “Ciência e pseudociência”. Esse verbete se encontra no livro “Textos selecionados de filosofia da ciência” e a autoria do verbete é a do filósofo Sven Oven Hansson. A editora do livro é a NEPFIL. Ainda uma outra referência seria o verbete “Pseudociência” do Compêndio em Linha de Problemas de Filosofia Analítica. O autor do verbete é o filósofo Rui Sampaio da Silva e você pode encontrar esse verbete em PDF no site do compêndio.
[Laira]
Por fim, siga o podcast na internet! Você pode fazer isso nos seguindo no seu aplicativo ou serviço favorito de podcast – Spotify, Google Podcasts, Deezer, Amazon Music, Stitcher ou Castbox – ou nos seguindo nas redes sociais: no Facebook, Instagram e TikTok é @esclarecimentop – tudo junto e minúsculo – e no Twitter é @esclarecimento_ – tudo junto e minúsculo também.
[Frank]
Isso é tudo por hoje, pessoal.
Até o próximo episódio!
[Laira]
Tchau tchau!


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