O que é arte? (S03E11) – Transcrição

Transcrição do décimo primeiro e último episódio da terceira temporada publicado no dia 27 de outubro de 2023.

Bloco 1

[Laira]
Ah, Frank! Ainda bem que está aqui…
[Frank]
Ih: lá vem… Diga: qual é a sua dúvida?
[Laira]
Sabe, eu estive pensando muito sobre arte ultimamente. Especificamente, sobre uma obra que me deixou confusa: “A fonte”, de Marcel Duchamp. Já ouviu falar dela?
[Frank]
Já, sim.
[Laira]
Poisé! Tipo: aquilo é considerado pro geral como uma obra de arte ou é apresentada como tal. Mas, sinceramente, é uma obra de arte? Essa foi a primeira dúvida que veio a minha mente: se esse urinol, esse mictório é uma obra de arte.
[Frank]
E o que quê mais?
[Laira]
Só que aí eu percebi o seguinte: essa dúvida é uma dúvida filosófica. Certo?
[Frank]
Certo.
[Laira]
Mas pra definir o que é uma obra de arte é preciso antes definir o que é arte. Tô certa no raciocínio?
[Frank]
Não vejo nenhum problema. Aliás, muito bem notado: você identificou um problema, percebeu que ele é filosófico e percebeu que pra respondê-lo seria preciso ter uma reposta para outro problema filosófico.
[Laira]
Então: A fonte do Duchamp é arte?
[Frank]
Você consegue me responde de fora imediata e com exemplos o que é arte?
[Laira]
Não consigo, Frank. Não consigo.
[Laira]
Por isso queria perguntar de você o que é arte. Consegue me responder?
[Frank]
Como sempre você só me vem com pergunta difícil.
[Laira]
Pouxam… então num vou mais perguntar as coisas de ti
[Frank]
Não, não: num tô reclamando não. E sim: eu consigo te responder o que é arte. Mas vou te apresentar algumas respostas e aí tu decide qual delas tu acha melhor, beleza?
[Laira]
Adooooooroo!

Bloco 2

[Frank]
Olha: existem muitas teorias que respondem o problema “O que é arte?”. Como são muitas, melhor a gente ter um foco aqui e por isso vou apresentar três delas, okay?
[Laira]
Sem problema, Frank. Na verdade eu já esperava isso, né, porque esse é meio que o padrão de apresentação das coisas que tu segue ao falar de filosofia comigo.
[Frank]
Faço isso assim porque acho isso a melhor maneira, né. Aí eu te apresento as teorias e tu mesmo decide qual é a melhor pra você.
[Laira]
As vezes acabo não tomando nenhuma posição porque todas as que tu fala tem problemas, né. Mas acho que isso é normal na filosofia.
[Frank]
Mais normal do que parece!
[Laira]
Mesmo assim, obrigado pela paciência comigo nessas coisas. De verdade.
[Frank]
Suave, Laira.
[Laira]
E aí: quais são essas teorias?
[Frank]
As três são a teoria da arte como imitação, a teoria da arte como expressão e a teoria da arte como forma significante.
[Laira]
Vamos começar pela primeira.
[Frank]
Certo. Começando pela primeira, a teoria da arte como imitação é uma das mais antigas teorias da arte existentes e é uma das mais comuns entre as pessoas no cotidiano.
[Laira]
Sério?
[Frank]
Sério! Porque essa teoria defende que algo é arte se ela imita algo. Ou seja: arte é imitação.
[Laira]
hhhuuummmm…..
[Frank]
O que acha?
[Laira]
Olha… num primeiro momento, concordo. Tipo: a fotografia e o cinema são tipos de arte que imitam que só os objetos e a natureza.
[Frank]
E mesmo antes desses tipos de arte serem criados, as imitações existiam em pinturas, esculturas e peças de teatro.
[Laira]
É verdade.
[Frank]
Muitas obras de arte realmente imitarem objetos é um ponto a favor dessa teoria. Agora: um outro ponto favorável à teoria seria a dela oferecer um critério bastante rigoroso de classificação para obras de arte: algo só é uma obra de arte se for uma imitação. E ainda um outro ponto favorável a teoria está nela oferecer um critério de valoração para as obras de arte. Isso permite distinguir obras boas de obras ruins: quanto mais a obra conseguisse imitar o objeto pretendido, melhor ela é.
[Laira]
Concordo que esses são realmente pontos a favor da teoria. Agora: existem objeções a essa teoria, certo?
[Frank]
Existem! Claro que existem… Uma das objeções diz que é fácil encontrar coisas que não imitam nada e mesmo assim são consideradas obras de arte. Por exemplo: muitas música, muitas obras literárias, muitos jogos de videogame, algumas esculturas abstratas e outras artes visuais não figurativas.
[Laira]
O senhor dos anéis não parece ser uma imitação de algo que existe, né…
[Frank]
God of War, as músicas mais antológicas de lofi hip hop também…
[Laira]
Verdade. Tem muita obra de arte que não está sendo contada aí…
[Frank]
Uma outra objeção a teoria está em desconsiderar a imitação como critério de classificação. Muitas obras dos mais variados tipos de arte – incluindo aquelas com algo grau de imitação, como a fotografia e o cinema – não imitam um objeto ou a natureza ou qualquer coisa que seja. Ou seja: a teoria deixa de fora muitas obras de arte que são amplamente consideradas obras de arte.
[Laira]
Pode me dar um exemplo?
[Frank]
Fácil: só botar ai no Google Imagens “Mondrian”.
[Laira tecla em seu smartphone a busca por Mondrian no Google Imagens]
[Laira]
Nossa: é verdade. Parece que as pinturas mais famosas dele só são esses quadros com linhas, cores, retângulos e quadrados…
[Frank]
Continuando, uma outra objeção está na valoração. É, no mínimo, complicado verificar se uma obra de arte é boa ou ruim quando ela não pretende imitar nada, por exemplo. Também é complicado valorar uma obra de arte quando esta está tentando imitar coisas que já não existem mais ou que são fantasiosas.
[Laira]
Tipo O senhor dos Anéis e Mondrian?
[Frank]
Tipo os dois.

Bloco 3

[Laira]
Olha: não fiquei muito convencida com essa teoria da imitação não. Quais são as outras teorias?
[Frank]
Uma outra alternativa seria a teoria da arte como expressão. Nessa teoria, uma obra só é arte quando exprime os sentimentos e emoções do artista. Tipo: existe aqui um deslocamento da compreensão do que é arte com base no artista ou criador da obra.
[Laira]
Huuuummmm….. E quais são as vantagens que essa teoria traz?
[Frank]
Um das vantagens seria… a de que essa teoria reconhece a importância das emoções e sentimentos nas obras de arte. Se tu, ao se deparar ou ao apreciar uma obra de arte, se sente tocado por ela de alguma forma, isso tá acontecendo porque o artista teve certas emoções e sentimentos e buscou provocar elas em você por meio da obra. Além disso, sem essas emoções e sentimentos, a obra não teria existido.
[Laira]
Huuummm…. Olha: faz sentido isso que você falou. Tem certas músicas que já escutei que me deixaram com certas emoções, sabe. Aí quando ia buscar mais informações sobre os músicos e o que eles queriam passar com essas músicas, percebia que o que sentia era algo proposital por parte deles. Era a intenção deles.
[Frank]
Muito bom! Agora: uma outra vantagem dessa teoria está em permitir classificar as obras de arte com um certo rigor. Tipo: algo é uma obra de arte se consegue exprimir as emoções ou sentimentos do artista. Num tem segredo.
[Laira]
A minha impressão, por enquanto, é de que essa teoria permite classificar mais obras de arte do que a teoria da imitação.
[Frank]
Verdade: o alcance dela é maior mesmo. Agora: uma outra vantagem dessa teoria está nela também oferecer um critério valorativo. Tipo: uma obra de arte é boa a depender do quanto ela melhor consegue exprimir os sentimentos ou emoções do artista que a criou. Não tem segredo de novo.
[Laira]
São muitas vantagens de novo! Mas aposto que existem objeções a essa teoria.
[Frank]
Claro que tem!
[Laira]
Eu tava pensando aqui em uma possível objeção…
[Frank]
Pois diga.
[Laira]
Imagina que eu bebi 5 garrafas de cerveja e isso me deixou muito sonolenta. O produtor dessas cerveja, ao fazer elas, com certeza não ficou sonolento igual eu fiquei ao beber elas.
[Frank]
E como isso pode ser considerado uma objeção a teoria?
[Laira]
É que esse raciocínio pode também ser aplicado na relação entre os artistas e as suas obras de arte: não é porque certa obra de arte provocou certas emoções em nós que isso significa que o artista que a fez tenha tido também essas emoções.
[Frank]
Excelente objeção! É exatamente isso, Laira. Sem tirar nem por.
[Laira]
Obrigada, Obrigada. Nunca fui humilde.
[Frank]
Uma outra objeção vai tratar da classificação das obras de arte. A teoria da arte como expressão abarca um número maior de obras do que a teoria da imitação. Ponto. MAS certos objetos que são considerados obras de arte não entrariam na classificação. Um artista de Jazz, por exemplo, num saxofone, pode apresentar uma música que na verdade é só um conjunto aleatório de sons. Essa música não parece transmitir nenhum sentimento aparente, pois sua construção é única e com forma aleatória. Um outro exemplo seria um artista pintar uma obra abstrata, que desafia certas concepções teóricas de arte ao invés de buscar transmitir seus sentimentos nela.
[Laira]
É.. achei plausível.
[Frank]
Uma última objeção que eu poderia te falar aqui seria sobre o critério da valoração. Como saber exatamente se uma obra de arte exprime de forma correta o que sentiu um artista já falecido, por exemplo? E no caso de obras de arte que foram atribuídas a um artista x, mas na verdade são de um artista y: a gente entendeu errado os sentimentos da obra por ela, na verdade, ter sido de um artista diferente do que sabíamos até agora?
[Laira]
Um outro exemplo de objeção, mas agora sobre as obras de arte onde o artistas são desconhecidos ou anônimos: como saber se o que sentimos é exatamente o que esse artista que não conhecemos quis que sentíssemos?
[Frank]
Complicado demais
[Laira]
É… complicado mesmo.

Bloco 4

[Frank]
Olha, Laira: ainda temos mais uma alternativa…
[Laira]
Mais uma?
[Frank]
Sim!
[Laira]
É verdade! Você disse que ia falar de três teorias. E qual é a terceira?
[Frank]
É a teoria da arte como forma significante. Ela foi criada pelo crítico e filósofo da arte inglês Clive Bell. Nessa teoria, as obras de arte provocam na gente certas emoções estéticas.
[Laira]
A teoria da arte como expressão ia por esse mesmo caminho.
[Frank]
Só que essa é diferente, pois essas emoções são diferentes das do nosso cotidiano. Além disso, elas podem ser variadas, mas ainda sim de um mesmo tipo, uma mesma categoria. A existência desse tipo de emoção que chamamos de emoção estética ocorre porque as obras de arte tem uma certa característica em comum que só elas tem – e por isso elas nos provocam emoções estéticas. Sem essa característica, as obras de arte deixariam de ser arte.
[Laira]
Huuummm… É verdade. A maneira como tu tá falando de emoção é diferente da trabalhada na arte como expressão.
[Frank]
Né?
[Laira]
Só que agora me veio a seguinte dúvida: característica em comum, essencial, é essa aí que tu tá falando?
[Frank]
Essa característica é a forma significante.
[Laira]
E o que é essa forma aí?
[Frank]
A forma significante, em linhas muito gerais, seria uma certa relação entre as partes ou características de uma obra, pois uma coisa que tem uma forma significante nos chama a atenção de tal maneira que qualquer alteração ou adaptação na obra a faria perder essa forma. Numa pintura, por exemplo, a forma significante seria a sua combinação de linhas, texturas e cores. Na música, a forma significante seria a organização temporal dos sons. No fim, uma coisa é arte se ela tem forma significante.
[Laira]
Acho que estou começando a entender…
[Frank]
Tá entendendo mesmo?
[Laira]
Tem algumas partes que acho que ainda estão meio nubladas, mas acho que tô começando a entender sim.
[Frank]
Olha: uma vantagem da teoria da arte como forma significante é a de que ela consegue abarcar todos os tipos de obras de arte, sejam elas existentes ou que ainda vão ser criadas. Se a obra de arte, atual ou futura, provocar emoções estéticas, é arte.
[Laira]
Concordo. Olhando por esse aspecto, parece mesmo uma vantagem dessa teoria – inclusive em relação as teorias anteriores.
[Frank]
Poisé. Só que a teoria da arte como expressão também tem seus problemas…
[Laira]
Novidade que tem. Toda teoria filosófica parece ter um problema, uma objeção pra ela. E qual é o problema dessa teoria?
[Frank]
Uma possível objeção seria a de que a teoria da forma significativa parece ter dois de seus conceitos-chave definidos de modo circular, um com base no outro. A emoção estética pode apenas ser sentida e entendida na presença de uma forma significante. Só que a forma significante é o conjunto, o arranjo das propriedades de uma obra de arte que originam a emoção estética. Percebe como uma é definida em cima da outra?
[Laira]
Verdade. Isso é um problema mesmo.
[Frank]
É preciso definir ou reconhecer a forma significante sem recorrer a essa circularidade envolvendo a emoção estética. O mesmo vale pra definição de emoção estética.
[Laira]
Quem defende essa teoria que resolva esse problema!
[Frank]
Agora: uma outra objeção a teoria está na não distinção entre obras de arte e coisas que não são arte. Quer ver um exemplo? Olha isso aqui…
[Laira]
Mostra aí…
[Frank mostra pra Laira, de seu smartphone, uma imagem da Caixa de Brillo do Andy Warhol]
[Frank]
Tá vendo essas caixas de Brillo?
[Laira]
Vejo sim.
[Frank]
A a Caixa de Brillo do Andy Warhol é diferente das outras caixas de detergente da fabricante Brillo?
[Laira]
Olha: não vejo diferença não…
[Frank]
A fonte do Duchamp é diferente de um urinol no mesmo formato que se encontra em um banheiro masculino?
[Laira]
Não.
[Frank]
Se é a forma significante que faz uma coisa se tornar um objeto de arte, então todas as caixas de detergente Brillo e vários dos urinóis existentes são obras de arte. Só que eles não são.
[Laira]
Concordo. Nesse sentido, concordo contigo. Aí muita coisa é obra de arte sendo que a maioria delas não é considerada assim.

Encerramento

[Laira]
Olá, gente! Eu sou Laira Maressa, sou biomédica e pesquisadora da Fiocruz Amazônia.
[Frank]
Olá, pessoas esclarecidas! Aqui quem fala é Frank Wyllys e sou tanto filósofo público quanto tenho TDAH.
[Laira]
Esse é o décimo primeiro episódio da terceira temporada do podcast.
[Frank]
Sendo este o último dessa temporada, gostaria de agradecer a todas as pessoas que ouviram e compartilharam os episódios dessa temporada. Além disso, gostaria de agradecer a Manauscult que, por meio do edital de cultura Thiago de Mello, na sua versão Novos Talentos, aprovou o projeto por mim submetido e que possibilitou o financiamento dessa temporada. E, claro, muito obrigado a vocês, público do podcast. Sem vocês, a gente não teria chegado a terceira temporada. Muito obrigado a todos vocês pessoal.
[Laira]
Dito isto, o episódio está embasado em algumas referências e vale destacar parte delas.
[Frank]
Uma dessas referências é o capítulo “Arte” do livro “Elementos básicos de filosofia”. O autor do capítulo e do livro é o filósofo Nigel Warburton e a editora do livro é a Gradiva. Uma outra referência seria o artigo “O que é arte?” do filósofo Aires Almeida. O artigo pode ser encontrado no site Crítica na rede. Ainda uma outra referência seria o capítulo “A criação artística e a obra de arte” do manual português de título “A Arte de pensar: Filosofia 10º Ano – Volume 2”. O manual tem vários autores – entre eles o Aires Almeida – e a editora do livro é a Editora Didáctica.
[Laira]
Por fim, siga o podcast na internet! Você pode fazer isso nos seguindo no seu aplicativo ou serviço favorito de podcast – Spotify, Google Podcasts, Deezer, Amazon Music ou Castbox – ou nos seguindo nas redes sociais: no Facebook, Instagram e TikTok é @esclarecimentop – tudo junto e minúsculo – e no Twitter é @esclarecimento_ – tudo junto e minúsculo também.
[Frank]
Isso é tudo por hoje, pessoal.
Até a próximo temporada!
[Laira]
Tchau tchau!
[Frank]
Bye!


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