Justificação(S01E03) – Transcrição

Terceiro episódio da temporada sobre epistemologia publicado no dia 13 de Setembro de 2021.

[INÍCIO DO EPISÓDIO]

[FRANK]

Imagine que esteja conversando com uma pessoa sobre a vacinação contra a COVID. De repente ela diz que não irá se vacinar e por vários motivos: o seu pastor não confia na eficácia da sua vacina, acredita que tem um chip dentro das vacinas e que as vacinas não foram realmente testadas – normalmente uma vacina demora muito mais tempo pra ser feita. Mas as suas informações sobre as vacinas é diferente, pois até leu os estudos da fase 3 de muitas delas e sabe que elas são seguras e eficazes contra o novo coronavírus. Diferente da outra pessoa, você está mais do que bem justificado sobre o benefício das vacinas.

O episódio de hoje irá tratar sobre esse conceito: o de justificação.

[SOM DE UMA BATERIA TOCANDO JAZZ]

[FRANK]

Qual a relação da justificação com a crença e a verdade? Quais são as características da justificação?? Que teorias filosóficas explicam como é a justificação de uma pessoa???

Meu nome é Frank Wyllys e este é um episódio especial do Esclarecimento com o podcast Ouvir Ciência da Fiocruz Amazônia – juntos para contribuir com a disseminação da ciência.

[CURTA PAUSA SILENCIOSA]

[FRANK]

Antes de começar, aviso que irei falar aqui a partir dos conceitos de crença e verdade. Se não tiver uma noção de como esses conceitos são trabalhados na epistemologia, só ouvir os dois primeiros episódios desse podcast, beleza?

Aviso dado!

Agora simbora que o assunto de hoje tá bem legal.

[MÚSICA DE LO-FI SURGINDO VAGAROSAMENTE AO FUNDO]

[FRANK]

Temos muito mais crenças sobre a realidade do que crenças verdadeiras sobre a realidade. Uma pessoa tem crenças verdadeiras quando crê que a terra não é plana ou que o homem já pisou na lua, por exemplo. Mas essa mesma pessoa também pode crer, por exemplo, que as vacinas contra a COVID mudam o DNA ou implantam chips com 5G por causa da China ou do Bill Gates – e por esse motivo não se vacinar. Claro, claro: é possível persuadir essa pessoa de modo a abandonar essa crença falsa – e está tudo bem, pois revisar ou mudar nossas crenças pra aproximá-la da verdade é algo da qual já estamos muito acostumados.

Mas o que gostaria de destacar aqui é um detalhe sobre as nossas crenças: as vezes, por sorte mesmo, elas acabam sendo verdadeiras. Suponha que de repente passe a ouvir barulho de fogos de artifício (SFX: som de foguetes).

[SOM DE FOGOS DE ARTIFÍCIO]

[FRANK]

Você pensa: deve ser bem algum candidato em campanha.

[SOM DE MAIS FOGOS DE ARTIFÍCIO]

[FRANK]

O foguetório segue de vez em quando.

[SOM DE FOGOS DE ARTIFÍCIO DESAPARECENDO]

[MÚSICA DE LO-FI SURGINDO RAPIDAMENTE AO FUNDO]

[FRANK]

Poucos minutos depois você vê na rua onde mora pessoas balançando bandeiras, carros de som e uma pessoa na rua cumprimentando e interagindo com os moradores. O que pensou, a sua crença, acabou por ser verdade mesmo. Mas poderia ser uma crença falsa, onde foguetório na verdade fosse de um fogueteiro avisando que nas redondezas está presente a polícia ou uma facção rival.

Esse caso mostra que… se contamos apenas com a crença e com a verdade pra dizer ou ter ciência sobre sabermos de algo, isso pode não ser o suficiente: as vezes podemos saber das coisas por sorte. Pode parecer algo besta esse detalhe, mas tente extrapolar isso daí para TUDO, tudo que você diz ou tem ciência que sabe. Tudo mesmo. E aí: tá sentindo o desconforto? Ééééééééé meu caro ouvinte: parece que temos um pepino daqueles pra descascar.

Agora deixa eu te falar: podemos sanar esse problema através da justificação. A justificação cumpre o papel de dar um suporte adequado a uma crença – dando assim maior garantia sobre a verdade da crença. Isso significa que uma crença é mais segura, robusta ou verdadeira quando temos razões, provas ou evidências a justificando. Portanto, se uma pessoa que crê na vacina como a única cura eficaz contra a COVID, ela está justificada nos mais variados estudos demonstrando isso. Ou seja: essa é uma crença que é verdadeira e está justificada.

É importante ter em mente alguns pontos com relação a justificação. Um desses pontos está na justificação ter níveis. Isso quer dizer que as razões ou evidências de uma pessoa em suporte a sua crença podem variar em termos de força e compreensão. Minha justificação sobre a crença relacionada ao formato da terra – ou seja: a terra COM CERTEZA não é plana – se fia no que aprendi sobre o assunto na escola e nos indícios diários a favor dessa crença. Ora: a bússola e o GPS funcionam muito bem. Mas um geógrafo ou um físico sabem bem mais sobre essa crença – e portanto tem justificações mais avançadas. Nesse sentido, ainda que ambos tenham uma crença verdadeira justificada, meu nível de justificação é fraco e de um leigo em comparação com a justificação forte e a nível de especialista do geógrafo ou do físico.

A lição que fica é a seguinte: tenha ou busque ter justificações fortes ou do mais alto nível em relação as suas crenças, pois quanto maior for o nível da sua justificação, maior o suporte e a probabilidade dessa crença ser verdadeira.

Um outro ponto em relação a justificação está no seu caráter normativo. A justificação leva uma pessoa a crer em algo se existirem boas razões ou evidências à favor dessa crença. É como se fosse uma obrigação, saca? Pensa no caso das vacinas contra a COVID: existe farta e robusta evidência científica à favor da eficácia delas. Além disso, essas evidências foram obtidas por meio dos melhores meios e métodos científicos de investigação existentes até o momento. Diante de tamanhas provas, temos não somente razão de sobra para crer nessas vacinas como cura eficaz contra o novo coronavírus: devemos crer nisso. A lição que fica é a seguinte: se você dispõe de dados, estudos ou outras boas referências à favor da verdade de uma crença, você tem a obrigação ter essa crença. Claro: a justificação não garante 100% que essa crença é mesmo verdadeira, pois somos falhos, mas ela ao menos te dá a segurança de manter essa crença e serve de indicativo sobre a probabilidade da crença ser verdadeira.

[MÚSICA DE LO-FI DESAPARECENDO AO FUNDO]

[CURTA PAUSA SILENCIOSA]

[MÚSICA DE LO-FI SURGINDO VAGAROSAMENTE AO FUNDO]

[FRANK]

É possível nos aprofundarmos um pouco mais em relação a justificação.

Muito geralmente – pra não dizer quase sempre – uma crença é justificada por outra crença. Por exemplo: creio que o processador do meu notebook tem o ouro como um de seus componentes não somente em razão do ouro ser um ótimo condutor elétrico como também pelo ouro estar facilmente presente em processadores eletrônicos. Top. É isso mesmo o que ocorre. Mas agora assuma que tu consegue identificar uma crença por uma letra do alfabeto e pensa no seguinte: uma pessoa tem uma crença A. Certo. Mas a justificação da crença A está na crença B. Mas B também precisa estar justificado, fazendo isso a partir de uma crença C. Mas a crença C também tem que estar justificada e faz isso a partir da crença D. O mesmo para D, que tem a crença E como justificação e assim segue se segue indefinidamente.

Esse regresso infinito na justificação de nossas crenças se chama o problema ou argumento do regresso. O ponto aqui está em destacar – ou simplesmente defender mesmo – que o inevitável e infinito regresso na nossa cadeia de justificação implica na não justificação de nossas crenças. Não é uma, duas ou um conjunto de crenças. É TODAS as nossas crenças. TODAS. E vale lembrar de uma das características da justificação: devemos crer quando temos razões – boas razões – à favor dessa crença. Se não conseguimos dar uma boa justificação as nossas crenças devido o regresso ao infinito na cadeia justificativa, onde não chegamos a crença de partida, então todas as crenças da cadeia parecem não estar justificadas.

Agripa, um filósofo grego, apresentou três opções de resposta ao problema do regresso. Esse é o Trilema de Agripa e as opções de resposta são:

  • A cadeia justificativa regride infinitamente
  • A cadeia justificativa volta-se sobre si própria, como num círculo
  • A cadeia justificativa para numa crença não justificada por outras crenças

Cada uma das opções pode ser respondida por uma teoria da justificação. A primeira opção é respondida pelo infinitismo. Ainda que não vá ser apresentado aqui essa teoria da justificação, o infinitismo defende que o regresso ao infinito não anula a justificação das nossas crenças. Seguindo adiante, a segunda opção é respondida pelo coerentismo e a terceira opção é respondida pelo fundacionalismo. Existem outras teorias da justificação, como o contextualismo, o evidencialismo e o confiabilismo, mas assim como o infinitismo elas não serão aqui apresentadas. Portanto, será apresentado aqui apenas o fundacionalismo e o coerentismo como respostas ao problema da regressão.

O fundacionalismo é a teoria da justificação que defende a justificação das crenças a partir de algumas crenças básicas. Os fundacionalistas costumam explicar a teoria por meio da metáfora do edifício – no caso um edifício das crenças -, onde a base do edifício é composta de crenças básicas e estas suportam justificacionalmente as crenças restantes. Portanto, em relação ao problema do regresso, o fundacionalismo o resolve ao parar a cadeia em uma ou mais crenças não justificadas por outras crenças – ou seja: são crenças autojustificáveis.

O problema, caros ouvintes, está nesse negócio de crenças básicas. De partida é possível pensar em dois problemas: o que consta como crença básica e se existem crenças básicas. Quando uma pessoa pergunta “o que consta como crença básica?”, ela quer saber das condições ou critérios que uma crença deve atender pra ser considerada básica. René Descartes, por exemplo, indica que uma crença é básica se ela for indubitável, infalível e auto-evidente. Mas se esses são os critérios a serem atendidos, quais crenças atendem esse critério? Você consegue, caro ouvinte, imaginar ou propor que crenças atendem esses critérios? Segundo Célia Teixeira, “[…], a maior parte dos epistemólogos actuais rejeita que alguma crença possa satisfazer […]” os critérios ali elencados. E se ainda sim for possível listar algumas crenças como básicas, elas são tão poucas que acabam sendo insuficiente para servir de alicerce ao nosso edifício de crenças – favor não esquecer que cremos bem mais do que imaginamos.

Seguindo adiante, o coerentismo é a teoria da justificação que defende a justificação de uma crenças a partir da sua coerência com outras crenças. Os coerentistas costumam explicar a teoria por meio da ideia de teia ou rede de crenças, onde as crenças se justificam umas as outras de forma interrelacionada. Portanto, ao menos em relação ao problema do regresso, o coerentismo o resolve colocando a cadeia de justificações envolta de si e entre si mesma. Ou seja: as crenças de uma pessoa está apoiada em outras crenças dessa mesma pessoa.

O coerentismo também é uma teoria que passa por alguns problemas. Um deles é chamado de problema do input. O problema do input trata da falta de relação entre o sistema de crenças de uma pessoa e a realidade: já que a justificação das crenças se dá pela coerência com as outras crenças da mesma pessoa, é possível que esse sistema de crenças justificadas não tenha relação nenhuma com a realidade ou o mundo exterior. Ou seja: se esse sistema de crenças da pessoa representa bem a realidade, é por sorte que isso acontece. Isso é um problemão, pois a crença, em sua base, serve pra representar o mundo em nossa mente. O coerentismo, portanto, teria como problema dar conta dessa entrada de informações e percepções – input – que a realidade fornece.

Um outro problema do coerentismo – relacionado, claro, com o problema do input – é o problema do isolamento. O problema do isolamento trata da falta de correlação entre dois ou mais sistemas de crenças. Uma pessoa, por exemplo, pode ter um sistema justificado de crenças, coerente, e ainda sim esse sistema coerente de crenças não ter nenhuma relação com o sistema de crenças de uma outra pessoa. Isso também é um problemão, pois as crenças de todas as pessoas deveriam representar a realidade da mesma maneira – ou ao menos é isso que se supõe. Uma pessoa, por exemplo, pode ter um sistema coerente de crenças e ser esquizofrênica. Ou seja: seu sistema de crenças não se relaciona não apenas com a realidade, mas também não se relaciona com outros sistemas de crenças. As vezes nem é preciso ter uma doença ou um transtorno: basta que uma parte do sistema de uma pessoa seja diferente do outro. Duas pessoas podem ter crenças relacionadas a COVID e aos cuidados que se deve ter com ela, mas crerem de forma distinta com relação a vacina: uma acha que esta é a única cura eficaz contra a doença e a outra acha que a vacina não funciona por não ter sido testada.

Por fim, tanto o fundacionalismo quanto o coerentismo respondem ao problema do regresso seguindo uma das três opções do trilema, mas ambos passam por alguns problemas. Independente de qual das duas teorias você adotar como resposta ao problema do regresso e como explicação da natureza da justificação, você terá de arcar com os seus problemas.

Isso é normal. Faz parte da filosofia.

Eu, por exemplo, sou um fundacionalista.

E você? Qual a sua posição filosófica???

[MÚSICA DE LO-FI DESAPARECENDO AO FUNDO]

[CURTA PAUSA SILENCIOSA]

[FRANK]

Olá ouvintes! Tudo bem com vocês?

Espero que sim, em!?

Esse é o terceiro episódio da primeira temporada do podcast que trata sobre Epistemologia. Aqui eu falo de justificação, mas tratar esse tema também envolve falar um pouco de crença e de verdade – ou pelo menos pressupor que você sabe alguma com relação a esses dois conceitos filosóficos.

[MÚSICA DE LO-FI SURGINDO AO FUNDO]

[FRANK]

É meus caros: isso significa que cada vez mais os assuntos vão se interrelacionar e às vezes, para você entender bem o episódio, vai ser preciso ouvir um ou mais episódios anteriores.

E como é de se esperar, este episódio está fundamentado em algumas referências. Temos aqui o capítulo 5 do “A teoria do conhecimento: uma introdução temática” do Moser, Mulder e Trout – o nome do capítulo é “A justificação e além”. Também temos os capítulos 6 e 7 do livro “Uma introdução à teoria do conhecimento” do Dan O’Brien. Cada um dos capítulos trata de uma das teorias da justificação – fundacionalismo e coerentismo. Temos também o capítulo de epistemologia da Célia Teixeira – esse capítulo se encontra no livro “Filosofia: uma introdução por disciplinas” e é organizado pelo Pedro Galvão. Também foi usado o verbete sobre “Conhecimento” do Luiz Estevinha Rodrigues do Compêndio em Linha de Problemas de Filosofia Analítica e, por último, os dois primeiros episódios desse podcast também são referências desse podcast – pois é preciso que você saiba o que é crença e o que é verdade.

Além das referências também gostaria de fazer alguns agradecimentos. Nesse caso, dois agradecimentos.

Meu primeiro agradecimento vai para a Fiocruz Amazônia! Sim, sim: como disse no início, esse é um episódio especial pois foi produzido dentro do Ouvir Ciência – Oficina de criação de podcasts para divulgação de pesquisas. E essa oficina, aliás, integra a 18ª Semana Nacional de Ciência e Tecnologia e que tem por tema “A transversalidade da ciência, tecnologia e inovações para o planeta”. Portanto, além da locução, roteiro e produção feita por mim, Frank Wyllys Cabral Lira, este episódio tem a supervisão da Professora Doutora Cristiane Barbosa e Professor Mestre Helder Mourão. Muito, mas muito obrigado pela oportunidade, experiências e aprendizados nessa oficina. De verdade!

O meu segundo agradecimento vai a todos os mecenas desse podcast: Laira Maressa, Fylype Wase e Helly Apoliano. Existem mais apoiadores, mas eles decidiram apoiar o podcast no anonimato. Mesmo assim, desde já, muito muito muito obrigado ao apoio financeiro de vocês. De verdade! E se você quer apoiar financeiramente esse podcast é só fazer uma doação de qualquer valor ou fazer assinatura mensal de 5 reais. Então com um valor qualquer um 5 reais você consegue contribuir financeiramente com esse podcast. A doação é somente via Pix, mas tu pode fazer a assinatura pelo PicPay, pelo apoie.se e também pelo Pix. E se você estiver interessado, você encontrar todas as informações de apoio financeiro no link esclarecimentopodcast.com.br/financie.

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Isso é tudo por hoje, pessoal!

Até o próximo episódio!!

Tchau tchau!!!

[MÚSICA DE LO-FI DESAPARECENDO AO FUNDO]

[FIM DO EPISÓDIO]


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